Páginas

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O soldado 60 e a sua mala de cartão


Publicado no Diário do Sul:
Por Maria Vitória Afonso

«A história que vou narrar, sem pretensões de contadora, apenas faz jus aos contadores de histórias da família do “Mal Espigado” a que me orgulho de pertencer.
Analfabetos, mas senhores de uma oralidade que prendia os casuais ouvintes, ainda hoje recordados pela nova geração.
O mancebo, que no título da minha crónica intitulo de soldado, nasceu em Colos em 1907. Filho de pequenos agricultores, não deixava porém de ser um menino mimado, principalmente por parte de sua mãe.
Quando chegou à idade escolar, começou a frequentar a mesma e fez o seu percurso normal com brilho e inteligência. Com 14 anos entrou numa oficina para aprender um ofício, precisamente o de carpinteiro de carros. O seu mestre, cedo lhe reconheceu inteligência e capacidade para a profissão Por lá foi evoluindo até chegar à idade do serviço militar. Em 1927,data em que atingiu os 20 anos foi à inspecção e ficou apurado.
Único filho, adorado pela mãe, transformou-se na suprema preocupação, uma vez que o país atravessava grande instabilidade política devido à recente revolução de 28 de Maio.
Os jornais noticiavam que em Lisboa havia constantemente tiros, revoltas, insurreições.
Acontece que havia em Colos, um militar prestigiado, o tenente coronel aviador Brito Pais Falcão, que com sua irmã era dono da Herdade do Monte Velho.
O tio por afinidade, deste mancebo era um trabalhador rural, pessoa inteligente em que Brito Pais confiava e até encarregado de lhe transmitir as ocorrências na herdade quando ele se afastava par ao estrangeiro ou para Lisboa. E era através de cartas que eles comunicavam.
A mãe do mancebo pediu ao cunhado que intercedesse junto de Brito Pais para que ele o protegesse durante o serviço militar.
Foi então marcada uma reunião de tio e sobrinho com Brito Pais na referida herdade precisamente no luxuoso escritório da residência na herdade. Aprazado o dia, sobrinho e tio dirigem-se ao Monte Velho.
A tranquilidade do fiel empregado contrastava com o nervosismo e a falta de a-vontade do jovem. Muito bem recebidos devido ao prestígio e honestidade do exímio trabalhador, o insigne militar muito amavelmente começou a redigir a carta para o comandante do quartel a que o mancebo fora destinado.
Terminada a carta, esboçou um sorriso, entregou-a ao rapaz e disse talvez um pouco despropositadamente:
“Os rapazes de agora são como verdadeiros anjinhos”:
Os dois agradeceram muito e retiraram-se.
O sobrinho no entanto não gostou nada da frase.
Chegou o dia da partida para a tropa. A mãe, extremosa preparou a mala de cartão com algumas roupas para o filho O que era um luxo nesta progenitora pois quase todos os rapazes, pobres como ele levavam suas roupas dentro dum talego.
Com muito carinho depositou a carta do nosso herói no fundo da mala, pois a recomendação deste prestigiado oficial era para ela uma mais valia.
Dois anos serviu o mancebo cumprindo o tempo devido. Era filho único e desejava muito despachar-se para vir ajudar os pais na agricultura.
Quando estava já de saída veio um oficial do exército ter com ele e disse:
-Sessenta, devido à tua inteligência e comportamento, sugiro-te que fiques para prosseguir carreira pois te apoiarei em tudo.
-Agradeço meu capitão, mas sou filho único e não vou dar a meus pais o desgosto de passarem  o resto dos seus dias com  o filho longe.
Nem assim a carta do insigne aviador saiu da mala de cartão.
Esta história é verídica.
Seus personagens: 
Tenente Coronel Brito Pais Falcão
Meu tio avô José Amador
José Eduardo - o humilde mancebo cuja mãe solicitou a carta que ele por brio não quis utilizar.    
José Eduardo era meu pai, que sempre estimou e admirou o insigne aviador que ele considerava uma excelente pessoa além dum herói nacional.
Brito Pais que tanto arriscou a vida nas suas expedições e que foi um pioneiro da aviação viria a morrer num estúpido acidente quando o seu avião chocou com outro aparelho.
O seu funeral realizou-se no dia 6 de Abril de1935 para o cemitério de Colos e no qual esteve presente Gago Coutinho. Este funeral teve mais de 10000 pessoas incluindo todos os colenses entre os quais o pai e o tio que o choraram sentidamente.»

 Maria Vitória Afonso